O silêncio também fala: desvendando uma trend que pode nos dizer muito sobre a cultura de trabalho
Nas últimas semanas, o assunto do momento no LinkedIn e nas bolhas que discutem questões ligadas ao mundo do trabalho é o tal do Quiet Quitting - em português, "demissão silenciosa", que significaria um funcionário fazer o "mínimo" possível.
Estamos falando assim entre aspas porque nós aqui, particularmente, não curtimos o termo. As palavras importam e, de alguma forma, esse termo já está insinuando que o certo e esperado é todo mundo fazer sempre mais. Mais. Mais.
Isso diz muito sobre nossa cultura do trabalho.
Bora conversar sobre isso?
Um papo reto mesmo?
Somente o necessário
O trabalho é um dos grandes temas da sociedade e sempre rende boas discussões, justamente porque é causa e efeito de mudanças culturais significativas. Para entender o espírito de um tempo, é essencial olhar para as relações de trabalho que estão sendo estabelecidas.
Se você parar para ler descrições de vagas nas plataformas de empregos hoje, com certeza vai encontrar muitas que juntam funções em uma e oferecem salários que não são compatíveis ao tanto que será exigido. Se isso é o que estão colocando no papel e divulgando assim abertamente, imagine então o que não acontece na prática, no dia a dia, nas pequenas e sutis violações de contrato?
Portanto, o que alguns estão chamando de "quiet quitting" muitas vezes é tão somente cumprir o combinado. Nem menos, nem mais: o combinado. Por que isso soa tão ofensivo?
Só o propósito não paga boleto
Você lembra como, há pouco tempo, veio uma onda forte de discursos que pregam o trabalho com propósito como fonte máxima (ou única) de realização?
A gente leu várias histórias bonitas de quem "largou tudo" e encontrou finalmente seu grande propósito de vida. Sim, trabalhar com algo que você gosta e/ou em uma causa que você acredita pode ser um combustível poderoso para alimentar a motivação e são caminhos possíveis para encontrar uma vida mais plena e equilibrada. Mas é sempre bom lembrar que não existe uma receita mágica que funcione para todo mundo.
Tem quem sonhe em ter seu próprio negócio e/ou viver da sua arte.
Tem quem prefira trabalhar para alguém e manter muito bem separadas essas linhas entre trabalho e vida pessoal.
E tem quem esteja ainda lutando pela sobrevivência para colocar comida na mesa e não tenha muitas opções para escolher. Quando se trata de capitalismo, precisamos tirar a lente cor de rosa dos óculos para enxergar o mundo do trabalho com mais pragmatismo.
De cima pra baixo
Falando em pragmatismo, um ponto que precisa ser considerado nessa discussão é a responsabilidade da liderança. Muitas vezes, essa postura de não fazer além do necessário no trabalho tem a ver também com o ambiente, a relação com os colegas, a cultura da empresa e, principalmente, o comportamento dos líderes.
E isso não é um mero achismo nosso. Segundo a Harvard Business Review, há uma correlação direta entre a avaliação dos líderes e a disposição dos colaboradores. Entre os melhores e piores líderes, de acordo com as avaliações, há uma diferença de "quiet quitters" de 3% para 14%. E nos colaboradores dispostos a entregar mais, a diferença vai no sentido oposto, de 62% para 20%.
Fonte: Harvard Business Review
Assim como o Burnout já foi reconhecido como uma doença ocupacional e pode gerar a responsabilização de uma empresa em várias esferas, a desmotivação associada a esse comportamento no trabalho não pode ser interpretada só como desleixo, "preguiça" (que, inclusive, é um resquício de pensamento colonial e racista), ou qualquer questão que seja 100% individual.
Pergunta do milhão: como isso impacta minha marca, carreira ou negócio?
Em um país onde o desemprego e a inflação estão batendo recordes e os direitos trabalhistas andam cada vez mais esquecidos, o cenário é difícil e favorece os abusos de todo tipo. Já no lado dos empregadores, sabemos que a alta carga tributária e outros aspectos burocráticos também não facilitam.
Inclusive, isso que estamos falando não acontece só no mundo corporativo, em uma relação entre chefes e "subordinados". Também pode acontecer com empreendedores, freelancers e autônomos nas relações com seus clientes. Sabe aquele cliente que te contrata para fazer X e sempre acaba pedindo um pouco mais, no jeitinho? Pois é, um "quiet quitting" pode existir nessas situações também.
Estamos sendo estimulados o tempo todo a ir até o nosso limite ou ultrapassá-lo, ignorando os sintomas físicos e mentais da nossa saúde até chegar a um ponto de completa exaustão.
Em agosto deste ano, um estagiário de 19 anos se jogou da janela do 7º andar de um renomado escritório de advocacia em São Paulo. Relatos sem comprovação judicial dizem que ele estava há três dias praticamente sem sair do escritório e ainda assim levou uma bronca da chefe em público por ter perdido um prazo. Felizmente, ele sobreviveu à queda.
Os escritórios jurídicos são conhecidos por serem ambientes de muita pressão e competitividade. Tanto que, após o ocorrido, surgiu uma página chamada Escritórios Expostos, com diversos relatos de assédio e sobrecarga de trabalho.
No lado dos profissionais: dentro do possível, é importante autoconhecimento para se observar e a capacidade de dizer "não" para colocar esses limites, sem cair nas armadilhas dos discursos que ainda permeiam essa ideia de produtividade.
No lado das empresas: é muito importante priorizar o bem-estar físico, mental e emocional dos seus colaboradores. Mais do que desistir do emprego, alguns podem chegar ao ponto de desistir da própria vida.*
*Setembro Amarelo é uma campanha brasileira de conscientização e prevenção ao suicídio, iniciada em 2015.
Procure saber. Se precisar, busque ajuda profissional.
Eu poderia emoldurar essa frase:
“A responsabilidade dos empregadores é descobrir o que as pessoas percebem como justo, então não faça nada menos do que isso”.
- Chris Edmonds, fundador e CEO do The Purposeful Culture Group
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